Quando a morte é medo
Tenho uma relação boa com médicos, hospitais e, sempre que posso, uso o privilégio de poder usufruir de um bom plano de saúde. Aliás, se a empresa que opera meu convênio fizesse um ranking de usuários que mais utilizam seus serviços, certamente eu estaria no topo dele. Faço tranquilamente vacinas, exames laboratoriais e de imagens, com exceção da temida ressonância. Gastei todas as minhas orações dentro daquele tubo magnético por 40 min, testei a paciência da enfermeira pedindo para sair da maca algumas vezes e, de quebra, descobri que preciso assinalar a opção dos formulários ‘sim, sou claustrofóbica’.
Mas toda essa “obsessão” por doenças começou com o medo de morrer. Quando fiquei mal e sem comer por quatro dias graças a uma úlcera no esôfago (que conto na crônica que estreou essa newsletter), tive um primeiro suposto contato com a possível finitude da minha tão jovem vida. Hoje vejo o exagero da pobre neurótica. Mas, naqueles dias, a preocupação fazia sentido, tanto que quando acordei da anestesia, minha primeira pergunta foi para verificar se tinha morrido. “Se você morreu, sou um anjo”, respondeu a enfermeira debochada.
Desde então, faço o máximo para afastar a morte de mim. Porém, mesmo toda essa precaução não garantiu que eu não “quebrasse” meu joelho depois de algumas estripulias em um circo e ficasse mais de um mês usando uma tala, morrendo (o ato falho) de culpa e de medo por ter rompido um ligamento. Depois de muitos ortopedistas (nunca acreditei em uma única opinião), muitas sessões de fisioterapia e acupuntura, solucionamos o problema sem entrar na faca e encarar a morte de perto mais uma vez (anestesias me assustam). Mas meu joelho nunca mais foi o mesmo.
Nesse período de repouso, fiquei mil vezes mais preocupada com minha saúde, principalmente porque descobri que nem tudo dava para ser previsto. Até a morte que, mesmo sendo a única certeza que temos, nem mesmo ela avisa quando vai chegar. Comecei a repensar toda essa preocupação, tive crises e mais crises de tristeza. “E agora, com o que vou me encasquetar?”, filosofava enquanto trocava o dia pela noite sentada na beirada da janela do apartamento com minha perna esticada e sua inseparável tala ortopédica. Aqui, não tinha espaço para o medo de cair e morrer porque moro no segundo andar e as janelas têm grades.
Lembrei dessa cena depois de receber uma mensagem do Gerson, meu professor de violão que, ao ler minha crônica da semana passada, me atribuiu elogios e simetrias de Clarice Lispector.
Nessas minhas crises existenciais na janela, quase sempre assistia uma das últimas entrevistas de Clarice Lispector antes de morrer para a TV Cultura. Em um determinado momento, o jornalista pergunta se ela morreria caso não pudesse mais escrever, no que ela responde “Eu acho que enquanto eu não escrevo, tô morta”. Ouvi como se fosse uma mensagem para minha grande preocupação com a morte: escrever para não deixar a vida.
O interessante é que esse insight não foi uma descoberta, mas sim uma recordação. A morte me obriga a escrever antes mesmo de eu aprender o abecedário.
Quando eu tinha três anos, meu avô José foi diagnosticado com câncer de pele. Depois de fazer a primeira e única cirurgia para tirar uma pinta no rosto, a responsável por acusar o estágio avançado da doença, eu, com atenção e boa vontade de criança, vendo ele com aqueles pontos por todo o rosto, passei a prescrever receitas médicas todos os dias que nos encontrávamos.
Ele, por sua vez, passou a cortar papéis e deixá-los no bolso para que sua neta médica sempre tivesse onde escrever seus tratamentos. Esse gesto virou ritual nos nossos encontros e acredito que trouxe ânimo para seus últimos dias de vida.
Foi assim que comecei a escrever. Minha primeira profissão foi de médica, mas hoje vejo que meu vô e o meu medo dessa morte eminente foram meus grandes incentivadores para seguir como escritora.
Ontem, na terapia, só chorei. Achei que não teria nada para escrever hoje. Logo eu, a pessoa que acreditava que a arte surgia a partir da melancolia. Grande engano. Meu desejo para escrever surge nos meus momentos de euforia e, só para ter esse texto pronto, busquei, no fundo da alma, as motivações cotidianas que me fazem abraçar a vida e fugir da morte. Mesmo sabendo que, um dia, terei que encará-la.
Quando esse momento chegar, peço uma receita para a Aline de três anos. Ela deve saber o melhor tratamento para receitar nesses casos.