Dias atrás, surgiu uma corrente no twitter que instigava os twitteiros a rastrear no fundo da memória o evento canônico de suas vidas. Li vários relatos, desde ver a pessoa que gosta beijando outro na sua frente, até uma pandemia, mudar de cidade, pedir demissão, começar uma faculdade… Apesar das interpretações variadas e individuais, notei que a característica comum nessas respostas vinha do entendimento que cada um atribuía para o momento responsável por definir sua trajetória atual. Conhecida também como aquela virada de chave que, de uma hora para outra, te tira do rumo e, se for preciso, apresenta novos caminhos.
Depois, pesquisando sobre o assunto, vi que a expressão “evento canônico” também tinha viralizado em outras redes sociais. Pela minha apuração, tudo começou com o filme ““Homem-aranha: Através do Aranhaverso”. Na jornada do herói da Marvel, mesmo em versões e universos diferentes, o personagem principal passa por acontecimentos comuns em todos eles para desenvolver suas habilidades e, na saga, seguir o caminho a que foi destinado: de ser o homem-aranha.
Toda essa história me tomou alguns dias. Diria que foi algo comparado a uma crise existencial. Não conseguia lembrar de nenhum marco digno de ganhar o selo de meu grande evento canônico. O que poderia se encaixar como o principal divisor de águas da minha vida?
Para facilitar, fui mapeando minha trajetória desde a adolescência até agora. Isso envolve primeiros amores, época de vestibular, mudança de estado, de cidade, de país. Foram importantes fases sim, mas, isoladas, não tinham a potência necessária para serem nomeadas como marcos da minha vida. Então, usei como filtro os últimos três grandes acontecimentos. Foi quando percebi uma coisa em comum entre eles: uma fitinha amarela de São José amarrada no meu punho.
Na primeira crônica desta newsletter (aqui), conto quando desenvolvi uma úlcera no esôfago por conta de uma grande decepção. Depois de me lamentar muito por não ter controle sobre minha vida e acreditar que tudo estava perdido, lembrei, em um dia de muito drama e melancolia, que meses antes havia me candidatado para um intercâmbio. Estava tão encasquetada com o plano A, vulgo o que acreditava ser O melhor, que esqueci das outras inúmeras possibilidades.
Por desencargo de consciência, abri o site da faculdade e a lista de aprovados tinha saído naquele dia. E, como devem imaginar, meu nome estava bem lá no topo (nenhum mérito acadêmico, apenas por seguir a ordem alfabética). Era 19 de março de 2019.
Fiquei atordoada, não sabia o que fazer. Estava no estágio, contei para as minhas chefes que, incentivando desde o princípio, me liberaram para ir embora e pensar melhor em casa. No caminho até as barcas (trabalhava no Rio e morava em Niterói) passei por uma igreja e decidi entrar. Estava lotada e acontecia uma mistura de missa com festa católica. Tocava uma música muito bonita e comecei a chorar.
Chorei muito. Na saída, uma senhora pegou no meu braço e perguntou se podia amarrar uma fitinha de São José. Assenti com a cabeça. “Hoje é o dia dele, menina. Pede para ele te guiar” me disse enquanto amarrava em mim a lembrança da minha esquecida fé em forma de pulseira. Por sinal, era amarela, minha cor favorita.
Dos preparativos para o intercâmbio até os dias que estive na Europa, em todos os momentos que surgia alguma dúvida sobre o que fazer ou que sentia algum tipo de medo, conversava com São José segurando minha fitinha. Foi assim que o xará do meu avô Zé virou meu melhor amigo e conselheiro. Deve ser coisa boa de nome.
O segundo grande acontecimento foi minha volta para o Brasil. Exatamente um ano depois de descobrir minha aprovação para o intercâmbio, no dia 19 de março de 2020, dia de São José, fiz meu primeiro teste de Covid 19. Lembro de chorar muito com medo do resultado e por toda exposição que estava sofrendo. Mas, quando olhei para o calendário e lembrei o que essa data representava, segurei na minha fitinha e confiei. Deu negativo.
No ano seguinte, dia 19 de março de 2021, entrei em uma igreja na rua da minha casa em Copacabana. O templo não era de São José, mas foi o primeiro lugar que encontrei para agradecer. Completava 1 mês que tinha voltado para o Rio de Janeiro, depois de um período difícil desempregada, no meio de uma pandemia e vivendo no interior de Minas. Mais uma vez, segurei na fitinha amarela, mais fina e desgastada, porém, cumprindo sua missão de guia.
Ontem, minha terapia começou no Uber a caminho da sessão. Tive uma conversa profunda com o motorista durante 1h de trânsito. Entre os assuntos, falamos, principalmente, sobre os significados que atribuímos para os acontecimentos do cotidiano em busca de alguma resposta. Concordamos que grande parte passa despercebida, mas que, quanto mais aprendemos a observar, mais nos desapegamos de encontrar razão para o que inexplicável. E é nesse momento que começam a fazer sentido.
Parte do papo foi essa minha história com São José. Contei para ele todos acontecimentos que descrevi aqui. Saindo do carro, ele olhou para meu pulso “Cadê a fitinha amarela?”., perguntou. “Arrebentou”, respondi.
Dei boa noite, agradeci o papo e a corrida, e entrei na terapia para buscar meu novo evento canônico.
*Canônico também é um adjetivo usado pela igreja católica como sinônimo de normas/regras estabelecidas. No meu caso, os eventos canônicos misturaram os dois sentidos: fé no Santo e marco temporal da vida. Uma coincidência de palavras e significados que damos a elas.
eu ameiii 🤩
minha favorita até agora <3